terça-feira, outubro 19, 2004

CARTA PÓSTUMA DE PERO VAZ DE CAMINHA

A (actual) El Rei de Portugal

Senhor,
Posto que nosso nobre amigo Brás Cubas ousou escrever suas memórias póstumas, resolvi, depois de muito hesitar lançar mão da mesma licença literária de aqui narrar-vos alguns fatos e esclarecer outros. De antemão é preciso dizer que não me é permitido descrever à vossa alteza, como fiz da última vez, as minúcias da terra, nem da ponta que mais contra o sul vemos, nem à outra ponta que contra norte vem de que nós houvemos vista.
Desde a última vez que escrevi, ao então El Rei D. Manuel I, que aqui jaz conosco nesta região dos mortos, surgiram falácias a meu respeito como a que eu não seria chegado às damas ou que meu sobrenome advinha do mal costume herdado do vil pecado capital da preguiça. A isso não convém comentar, pois, como disse, são falácias e tais não merecem consideração.
Muitos perguntam por que eu, tão nobre figura, embarquei naquela infeliz empresa de ir às Índias para acabar nas mãos dos mouros. Ora, pois, pois, Vossa Alteza e nobres aficionados na história, passei esse milênio como um túmulo, mas agora, hei-la: a verdade! E, creiam-me, pois como já atestaram Brás e Gulliver, defuntos são por demais sinceros.
Ocorre que por volta de 1470 quando contava apenas 21 anos fui, por diversão a uma vidente que disse-me com olhos enevoados:
- Vejo as Índias na sua vida...!
Parti, pois naquela malfadada viagem.
Raios! Só aqui fui descobrir que troquei de índias. As verdadeiras eram aquelas das vergonhas nuas e cerradinhas que ainda hoje povoam aquela formosa ilha de Vera Cruz. Ah!
Quanto aos meus algozes, cheguei até a escrever minha Ode ao Mouro quando o Mário aqui aportou com os seus modernismos, mas não há porque culpá-los, já que é minha a má interpretação do destino.
Naquela carta do saudoso ano de 1500 pedi a El Rei o livramento do meu genro Jorge de Osório, que minha irmã tão desesperadamente suplicava. Hoje nestas terras de além-mar e além-tudo vejo que foi coisa que jamais devia ter feito, uma vez que fiquei sabendo que o meu genro voltou a extorquir e foi mandado numa leva de degredados para Vera Cruz, actualmente Brasil. Hoje parece-me grande a descendência de Osório naquelas terras, espalhados por todos os cantos, principalmente numa tal Brasília.
Sinto-me culpado, em cooperar com tudo isso, tendo solicitado o livramento do meu genro e, como dantes, peço-vos como reparação, que o melhor que se pode fazer será salvar aquela gente. Não conheço cá vossa alteza, a não ser pelo ouvir dizer, e, pelo ouvir dizer sei que sois de coração nobre. Peço-vos que, por novamente me fazer singular mercê, mande vir do Brasil todos os descendentes do meu genro que por lá vivem e repare-nos esse mal – o que receberei em muita mercê.
Beijo as mãos de Vossa Alteza.
Deste Porto sem volta, do vosso outro lado da vida.

Pero Vaz de Caminha

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