domingo, outubro 24, 2004

A CONDENSAÇÃO VIVA DE TODOS OS SÉCULOS

(Do delírio de Brás Cubas)

Imagina tu
Uma redução dos séculos
E um desfilar de todos eles,
As raças todas,
Todas as paixões,
O tumulto dos impérios,
A guerra dos apetites e dos ódios,
A destruição recíproca dos os seres e das coisas.

Que espetáculo!
Acerbo e curioso espetáculo.
Para descrevê-lo seria preciso fixar o relâmpago.
Os séculos desfilando num turbilhão.

Flagelos e delícias,
O amor multiplicando a miséria,
A miséria agravando a debilidade,
A cobiça que devora,
A cólera que inflama,
A inveja que baba,
A enxada e a pena,
Úmidas de suor,

E a ambição,
A fome,
A vaidade,
A melancolia,
A riqueza,
O amor,

E todos agitavam o homem,
Como um chocalho,
Até destruí-lo,
Como um farrapo.

Eram as formas várias de um mal,
Que ora mordia a víscera,
Ora mordia o pensamento,
E passeava eternamente
As suas vestes de arlequim,
Em derredor da espécie.

A dor cedia alguma vez,
Mas cedia à indiferença,
Que era um sono sem sonhos,
Ou ao prazer,
Que era uma dor bastarda.

Então o homem, flagelado e rebelde,
Corria diante da fatalidade das coisas,
Atrás de uma figura nebulosa e esquiva,
Feita de retalhos,
Um retalho de impalpável,
Outro de improvável,
Outro de invisível,
Cozidos todos a ponto precário,
Com a agulha da imaginação;

E essa figura,
Nada menos que a quimera da felicidade,
Ou lhe fugia perpetuamente,
Ou deixava-se apanhar pela fralda,
E o homem a cingia ao peito,
E então ela ria,
Como um escárnio,
E sumia-se, como uma ilusão.

ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas.
São Paulo: Klick Editora, 2000

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