domingo, outubro 31, 2004

CONTINUAÇÃO DO DELÍRIO

(do delírio de Brás Cubas)

Os séculos passavam à minha frente,
Velozes e turbulentos,
As gerações que se superpunham às gerações,
Umas tristes, como os hebreus do cativeiro,
Outras alegres, como os devassos de Comodo,
E todas elas pontuais na sepultura.

Cada século trazia a sua porção
De sombra e de luz,
De apatia e de combate,
De verdade ou de erro,
E o seu cortejo de sistemas,
De idéias novas,
De novas ilusões;

Em cada um deles
Rebentava as verduras de uma primavera,
E amareleciam depois,
Para remoçar mais tarde.
Ao passo que a vida
Tinha assim uma regularidade de calendário,
Fazia-se a história e a civilização,

E o homem,
Nu e desarmado,
Armava-se e vestia-se,
Construía o tugúrio e o palácio,
A rude aldeia e Tebas de cem portas,
Criava a ciência, que perscruta,
E a arte que enleva

Fazia-se orador,
Mecânico,
Filósofo,
Corria a face do globo,
Descia ao ventre da Terra,
Subia à esfera das nuvens,
Colaborando assim na obra misteriosa,
Com que entretinha a necessidade da vida
E a melancolia do desamparo.

Enfim chegou o século presente,
E atrás dele os futuros.
Aquele vinha ágil,
Destro,
Vibrante,
Cheio de si,
Um pouco difuso,
Audaz,
Sabedor,
Mas ao cabo
Tão miserável como os primeiros,
E assim passou
E assim passaram os outros,
Com a mesma rapidez
E igual monotonia.

ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Klick Editora, 1997.

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