segunda-feira, novembro 22, 2004

QUANTO VALE UM BOM AMIGO?

Vale para alegrar as tardes sem encanto
Ou pra consolar-nos na hora do pranto

Vale como álibi das histórias mal contadas
Ou como comparsa de aventuras malfadadas

Vale como refresco para os dias de calor
Ou com analista para os traumas de amor

Vale como óculos quando a vista é turva
Ou como sinal quando é perigosa a curva

Vale uma esmola quando falta o pão
Ou um apoio quando falta chão

Vale pra tirar a mosca que caiu na sopa
Ou a mancha escura que tingiu a roupa

Vale como abrigo quando falta teto
Ou um inseticida pra matar o inseto

Vale por mil sonhos, dez mil conversas fiadas,
Cem mil sábados à noite, alguns milhões de risadas

Vale muito mais do que se pode pagar
Vale muitos reinos, vale o próprio ar

Que mais se compararia à amizade?
Um raio de sol em meio à tempestade?

domingo, outubro 31, 2004

CONTINUAÇÃO DO DELÍRIO

(do delírio de Brás Cubas)

Os séculos passavam à minha frente,
Velozes e turbulentos,
As gerações que se superpunham às gerações,
Umas tristes, como os hebreus do cativeiro,
Outras alegres, como os devassos de Comodo,
E todas elas pontuais na sepultura.

Cada século trazia a sua porção
De sombra e de luz,
De apatia e de combate,
De verdade ou de erro,
E o seu cortejo de sistemas,
De idéias novas,
De novas ilusões;

Em cada um deles
Rebentava as verduras de uma primavera,
E amareleciam depois,
Para remoçar mais tarde.
Ao passo que a vida
Tinha assim uma regularidade de calendário,
Fazia-se a história e a civilização,

E o homem,
Nu e desarmado,
Armava-se e vestia-se,
Construía o tugúrio e o palácio,
A rude aldeia e Tebas de cem portas,
Criava a ciência, que perscruta,
E a arte que enleva

Fazia-se orador,
Mecânico,
Filósofo,
Corria a face do globo,
Descia ao ventre da Terra,
Subia à esfera das nuvens,
Colaborando assim na obra misteriosa,
Com que entretinha a necessidade da vida
E a melancolia do desamparo.

Enfim chegou o século presente,
E atrás dele os futuros.
Aquele vinha ágil,
Destro,
Vibrante,
Cheio de si,
Um pouco difuso,
Audaz,
Sabedor,
Mas ao cabo
Tão miserável como os primeiros,
E assim passou
E assim passaram os outros,
Com a mesma rapidez
E igual monotonia.

ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Klick Editora, 1997.

domingo, outubro 24, 2004

A CONDENSAÇÃO VIVA DE TODOS OS SÉCULOS

(Do delírio de Brás Cubas)

Imagina tu
Uma redução dos séculos
E um desfilar de todos eles,
As raças todas,
Todas as paixões,
O tumulto dos impérios,
A guerra dos apetites e dos ódios,
A destruição recíproca dos os seres e das coisas.

Que espetáculo!
Acerbo e curioso espetáculo.
Para descrevê-lo seria preciso fixar o relâmpago.
Os séculos desfilando num turbilhão.

Flagelos e delícias,
O amor multiplicando a miséria,
A miséria agravando a debilidade,
A cobiça que devora,
A cólera que inflama,
A inveja que baba,
A enxada e a pena,
Úmidas de suor,

E a ambição,
A fome,
A vaidade,
A melancolia,
A riqueza,
O amor,

E todos agitavam o homem,
Como um chocalho,
Até destruí-lo,
Como um farrapo.

Eram as formas várias de um mal,
Que ora mordia a víscera,
Ora mordia o pensamento,
E passeava eternamente
As suas vestes de arlequim,
Em derredor da espécie.

A dor cedia alguma vez,
Mas cedia à indiferença,
Que era um sono sem sonhos,
Ou ao prazer,
Que era uma dor bastarda.

Então o homem, flagelado e rebelde,
Corria diante da fatalidade das coisas,
Atrás de uma figura nebulosa e esquiva,
Feita de retalhos,
Um retalho de impalpável,
Outro de improvável,
Outro de invisível,
Cozidos todos a ponto precário,
Com a agulha da imaginação;

E essa figura,
Nada menos que a quimera da felicidade,
Ou lhe fugia perpetuamente,
Ou deixava-se apanhar pela fralda,
E o homem a cingia ao peito,
E então ela ria,
Como um escárnio,
E sumia-se, como uma ilusão.

ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas.
São Paulo: Klick Editora, 2000

sábado, outubro 23, 2004

Pense a Música


Dois Rios - Skank
Composição: (samuel Rosa - Lô Borges - Nando Reis)

O céu está no chão
O céu não cai do alto
É o claro, é a escuridão
O céu que toca o chão
E o céu que vai no alto
Dois lados deram as mãos
Como eu fiz também
Só pra poder conhecer
O que a voz da vida vem dizer

Que os braços sentem
E os olhos vêem
Que os lábios sejam
Dois rios inteiros
Sem direção

O sol é o pé e a mão
O sol é a mãe e o pai
Dissolve a escuridão
O sol se põe se vai
E após se pôr
O sol renasce no Japão
Eu vi também
Só pra poder entender
Na voz a vida ouvi dizer

Que os braços sentem
E os olhos vêem
E os lábios beijam
Dois rios inteiros
Sem direção

E o meu lugar é esse
Ao lado seu, meu corpo inteiro
Dou o meu lugar pois o seu lugar
É o meu amor primeiro
O dia e a noite as quatro estações
Que os braços sentemE os olhos vêem
E os lábios SejamDois rios inteiros
Sem direção

terça-feira, outubro 19, 2004

CARTA PÓSTUMA DE PERO VAZ DE CAMINHA

A (actual) El Rei de Portugal

Senhor,
Posto que nosso nobre amigo Brás Cubas ousou escrever suas memórias póstumas, resolvi, depois de muito hesitar lançar mão da mesma licença literária de aqui narrar-vos alguns fatos e esclarecer outros. De antemão é preciso dizer que não me é permitido descrever à vossa alteza, como fiz da última vez, as minúcias da terra, nem da ponta que mais contra o sul vemos, nem à outra ponta que contra norte vem de que nós houvemos vista.
Desde a última vez que escrevi, ao então El Rei D. Manuel I, que aqui jaz conosco nesta região dos mortos, surgiram falácias a meu respeito como a que eu não seria chegado às damas ou que meu sobrenome advinha do mal costume herdado do vil pecado capital da preguiça. A isso não convém comentar, pois, como disse, são falácias e tais não merecem consideração.
Muitos perguntam por que eu, tão nobre figura, embarquei naquela infeliz empresa de ir às Índias para acabar nas mãos dos mouros. Ora, pois, pois, Vossa Alteza e nobres aficionados na história, passei esse milênio como um túmulo, mas agora, hei-la: a verdade! E, creiam-me, pois como já atestaram Brás e Gulliver, defuntos são por demais sinceros.
Ocorre que por volta de 1470 quando contava apenas 21 anos fui, por diversão a uma vidente que disse-me com olhos enevoados:
- Vejo as Índias na sua vida...!
Parti, pois naquela malfadada viagem.
Raios! Só aqui fui descobrir que troquei de índias. As verdadeiras eram aquelas das vergonhas nuas e cerradinhas que ainda hoje povoam aquela formosa ilha de Vera Cruz. Ah!
Quanto aos meus algozes, cheguei até a escrever minha Ode ao Mouro quando o Mário aqui aportou com os seus modernismos, mas não há porque culpá-los, já que é minha a má interpretação do destino.
Naquela carta do saudoso ano de 1500 pedi a El Rei o livramento do meu genro Jorge de Osório, que minha irmã tão desesperadamente suplicava. Hoje nestas terras de além-mar e além-tudo vejo que foi coisa que jamais devia ter feito, uma vez que fiquei sabendo que o meu genro voltou a extorquir e foi mandado numa leva de degredados para Vera Cruz, actualmente Brasil. Hoje parece-me grande a descendência de Osório naquelas terras, espalhados por todos os cantos, principalmente numa tal Brasília.
Sinto-me culpado, em cooperar com tudo isso, tendo solicitado o livramento do meu genro e, como dantes, peço-vos como reparação, que o melhor que se pode fazer será salvar aquela gente. Não conheço cá vossa alteza, a não ser pelo ouvir dizer, e, pelo ouvir dizer sei que sois de coração nobre. Peço-vos que, por novamente me fazer singular mercê, mande vir do Brasil todos os descendentes do meu genro que por lá vivem e repare-nos esse mal – o que receberei em muita mercê.
Beijo as mãos de Vossa Alteza.
Deste Porto sem volta, do vosso outro lado da vida.

Pero Vaz de Caminha

domingo, outubro 17, 2004

VERSOS ROUBADOS

VERSOS ROUBADOS (I) – SEM ESSA DE AMOR

Provisoriamente não cantaremos o amor,
Essa palavra de luxo
Estou farto do lirismo namorador.

Enquanto os homens correm atrás de mulheres,
Uma mosca pousa na sopa,
A noite banha sua roupa,
Facas faíscam. Não são apenas talheres!
Um sedutor tomba morto
...triste, torto...

Saudade... amor... cantigas de ninar.
Não quero ouvir essa interior balada.
Dê-me apenas licença pra chorar
- Mais nada.

Rasga estes versos que eu te fiz, amor!
Deita-os ao nada, ao pó, ao esquecimento.
Talvez, quem sabe, lhe dissipe a dor,
Mas eu a viverei em cada vão momento.



VERSOS ROUBADOS (II) - A LUA DOS POETAS

A Lua (dizem os ingleses)
É azul de quando em quando.
Cheia, serena, pura,
Como uma hóstia de luz erguida no horizonte,
Eriçada de luxúria,
Deserta e incerta...
inconstante Lua
Que mensalmente troca suas fases.
Do local de onde ela paira,
Uma maravilha e um sinal para os mortais.
a lua,
Crepúsculo na noite... é triste ver,
pálida... tão triste,
tão branca, na rua
Tenho fases, como a lua,
minha branca e pequenina lua.
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!